Música Popular Piauiense: História e Memória
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No texto que se apresenta de forma parcial para o exame de qualificação, disserto sobre a produção da chamada “música popular piauiense”[1] dos anos 1970 a 1985 na cidade de Teresina. Esse período foi marcado por debates no campo da música dita “popular” por concentrar em sua construção aspectos de uma imaginação baseada nos conceitos de autenticidade e regionalidade. As músicas “populares” eram compostas, tocadas e cantadas com o intuito de representar o piauiense em suas letras e rítmica, no entanto, a construção sonora dessa canção era polêmica na época. As estéticas musicais nordestinas[2] como xotes, frevos, baiões, eram inspiradoras de uma ala da “música piauiense” vista no seu campo social como regionalista, enquanto outras vertentes pretendiam um som que na época era considerado como “universalista”.
Analiso, no capítulo que segue, as tensões em torno da música regional teresinense apresentando o panorama da música popular nos anos 1970, os circuitos, estilos[3], meios de divulgação, mercados e públicos vetores da MPP (“música popular piauiense”). Em seguida apresento os atores do campo social da MPP tendo em vista as redes de relações, ligações e segmentações entre os artistas. Os trabalhos de John Arundel Barnes, Jan Van Velsen reunidos na coletânea Antropologia das Sociedades Contemporâneas, organizada por Bela Feldman-Bianco serão um aporte metodológico fundamental para discutir esse ponto do tema desta pesquisa. Essa abordagem antropológica focaliza os eventos microscópicos da cultura. Enfoco, portanto, nos agrupamentos e interações em torno da composição da musicalidade local interpretando os dados da memória e da história da “música popular piauiense” conhecidos ao longo da pesquisa como parte constituinte da análise dos processos sociais em torno desses sujeitos.
As redes de relações[4] que envolviam o panorama da música popular piauiense englobam agentes diferenciados, nesse sentido faz-se necessário enfocar em personagens particulares.
A cultura não é meramente um sistema de convicções e práticas formais. É essencialmente formada por reações individuais a um padrão tradicionalmente determinado e por variações desse padrão; e realmente nenhuma cultura poderá ser entendida se atenção especial não for dedicada a essa variação de manifestações individuais (VELSEN, 1967).
A “música popular” em Teresina apresenta algumas divergências importantes para a compreensão de sua construção: “Música Popular Piauiense” é a música composta por piauienses ou por pessoas de outros estados brasileiros que moravam em Teresina. A incorporação por músicos e compositores piauienses de elementos estéticos “estrangeiros”, sobretudo a influência de gêneros musicais norte-americanos como o jazz[5] e o pop, era condenada por muitos como atitude alienante, e valorizada por outros por trazerem inovações importantes na construção da “música piauiense”. Para compreender os reflexos e a composição de uma ideologia que entende a música como elemento importante nas concepções de pertencimento social, mapeei e analisei a produção musical teresinense que apresenta ideias de autenticidade cultural e identidade piauiense em sua construção.
O sentimento de pertencimento à cidade e ao estado piauiense, o apego às estéticas sonoras tradicionais do nordeste que se refletia nos modos de composição de alguns artistas (compositores e intérpretes) locais e simultaneamente geravam tensões sobre a caracterização da musicalidade local, construíram, no campo social de articulação das bases estéticas, ideológicas e mercadológicas da “música popular piauiense” debates e experiências sobre a formação de uma cultura e de uma consciência nacional-moderna.
Nesse âmbito, as categorias que centram as concepções de nacionalidade no campo de circulação da “música piauiense” se referem às ideias de “autenticidade cultural” e “movimento cultural”. Para compreender a articulação dessas categorias na imaginação da “música popular piauiense” analiso os principais vetores da MPP, como: instituições, pessoas. A análise do circuito de consumo da MPP será fonte para discutir as articulações da indústria cultural em Teresina e sua relação com os centros desta indústria no país e, eventualmente, fora dele. Bem como dará densidade na interpretação dos dilemas e debates em torno da construção da MPP, tendo em vista o contexto político e econômico que circunda suas performances, absorções e reinterpretações regionalmente.
É importante ressaltar que este estudo não percorre a década de 1970 e os anos 1980 a 1985 de modo linear. Analisamos material textual, musical, reportagens e depoimentos como fontes para interpretar os processos de construção simbólica da música popular piauiense compreendendo suas estratégias de articulação, pensando-a em consonância às conjunturas diversas que a transcorrem. Os critérios de definição das categorias de análise foram escolhidos a partir de direcionamentos antropológicos de pensar as dimensões culturais que perpassam as unidades de análise do problema em questão. A busca pelos campos de atividades e organização da música piauiense, as diferenciações internas de composição, produção, circulação/difusão, divulgação, trata – de uma dimensão espacial e contextual das relações entre música e identidade.
A pesquisa documental e a busca por histórias de vida sobre a música dos anos 1970-1985 dá à pesquisa a dimensão temporal do processo de construção da música popular piauiense. O material empírico coletado consiste em entrevistas com compositores e intérpretes, o que permitiu reconstituir as redes de relações entre estes agentes, bem como auxiliou na reconstrução de parte da organização do campo artístico da cidade e de suas atividades no âmbito musical; pesquisa hemerográfica desenvolvida no Arquivo Público do Piauí que forneceu dados importantes sobre os locais de performance dos compositores e intérpretes da chamada música popular piauiense (endereço dos bares onde ocorriam apresentações musicais, nomes dos proprietários desses locais, dias de apresentação); obtive também informações sobre a conjuntura cultural e os contextos a que Teresina se ligava. As colunas de jornais sobre aspectos da sociedade, política, economia, deram suporte para uma interpretação mais ampla da conjuntura da época nesse âmbito. Tive acesso também a alguns LPs gravados durante a década de 1980 tanto por produções independentes, quanto financiadas por órgãos estatais.
Pesquisei os seguintes jornais que circulavam na época: A Tribuna, O Dia, O Estado, O Estado do Piauí, O Pirralho. Os dados encontrados nas revistas e jornais do Arquivo Público se referem também às redes de comunicação que a cidade dispunha no período, como a televisão (então, recém-chegada), o rádio, jornais, telefonia, instrumentos que permitiam o acesso e a troca de informações na cidade. Não foi possível, em função do curto tempo de pesquisa, integralmente todos os jornais publicados em Teresina naquele período. Por isso, me concentrei especificamente nas informações sobre a cultura[6] teresinense, na busca por dados sobre os festivais, shows, nomes dos bares, pontos de encontro ou performance dos shows. Nas revistas que circulavam na década e nas mensagens enviadas pelo Governo do Estado à Assembleia Legislativa também encontrei dados quantificados sobre as atividades que ocorreram na cidade sob a organização dos órgãos do estado.
A Revista Presença, editada pela fundação cultural do Piauí, que circulou em 1974 e 1975 apresentava relatórios do departamento de assuntos culturais[7]. Pude mapear a partir dessas publicações alguns shows de música autoral que ocorreram no período dos anos 1970-1985. Para reconstruir o cenário local e interpretar a construção da música piauiense, ao mesmo tempo em que se problematiza o caráter popular da mesma, é necessário aprofundar as descrições a cerca dos processos que envolvem o contexto em que o movimento musical se compõe. Estas análises são úteis para compreender a circulação da música popular nos anos 1970-1985, as relações e/ou divergências em torno das concepções de autenticidade e regional no universo das canções piauienses.
A música popular piauiense apresenta em sua construção distinções internas referentes aos gêneros e estilos de sua composição. Porém, o sentido principal de sua criação demonstra a vontade de refletir sobre as mudanças sociais em curso na época e ao mesmo tempo de atualizar as práticas musicais locais atribuindo-as identidades que mesclam em suas sonoridades aspectos tidos como modernos e tradicionais. No entanto, estudar a música de um determinado local requer observar os dados percebendo a situação cultural específica, a época em que se desenvolve e como a música se insere nas redes de relações dos indivíduos na região observada. Nesse sentido, a escrita deste capítulo enfoca a conjuntura cultural teresinense e como esta se reflete nas concepções a respeito da composição da música popular piauiense, apresento alguns espaços onde ocorriam as performances de alguns compositores e intérpretes que vivenciaram a década, os sujeitos entrevistados, o material documental coletado nos acervos públicos e pessoais desses músicos.
A conjuntura política vivida nos anos 1970-1974 era de insatisfação popular quanto à política econômica de diminuição salarial e redução do poder de compra para muitos trabalhadores, o que fez diminuir o faturamento de muitas empresas. Márcia Tosta Dias (2000) ressalta que no ramo musical, a produção de discos organizada em uma linha de montagem já era realidade no Brasil. No entanto, em Teresina, a produção material e a produçao artística-musical era feita em geral por setores do eixo Rio-São Paulo pois a cidade não dispunha de aparato tecnológico para gravação das composições musicais dos artistas locais. A partir dos anos 1970 com a criação de campus universitário, da inserção da tv, hábitos se modificavam e implicam características específicas na composição da música feita em Teresina. As transformações culturais, econômicas, sociais, levaram a uma reavaliação das normas e padrões culturais por parte de muitos dos compositores e intérpretes da música popular piauiense.
Analisando as notícias de jornais, é latente o discurso de que o Piauí começava a romper com uma visão negativa que recaía sobre o estado. Dentro da configuração geográfica nacional o Piauí estava, portanto, se integrando às outras unidades federativas e saindo do período da civilização do couro, em que as fazendas de gado tornavam o Piauí conhecido como estado pecuário, e a economia local baseava-se em atividades pastoris. Na década de 1970 o governo estadual com incentivos da administração federal começa a solucionar problemas nos setores de energia, comunicações, transportes. Esse progresso, portanto, segundo os jornais indicava novos modos de pensar o estado e é fonte para refletir a ideia de identidade da música local.
Especificamente, o campo de produção da música popular piauiense emana símbolos que apontam inicialmente para distinções entre moderno e tradicional dentro de seu universo de relações, bem como incorpora diferenças internas e variáveis úteis para refletir sobre as mudanças culturais ocorridas no período. Isto é importante para perceber que em geral, os fatos culturais agregam em sua totalidade diferentes aspectos, articulam dentro de suas amplas dimensões valores e sujeitos diversificados. Os padrões perceptíveis de uma dada manifestação alteram-se e tornam-se ao mesmo tempo lugar de compreensão das características e construções da música popular expressada num local. Busco, nesse sentido, os detalhes, os elementos que traduzem o sentimento de pertencimento ao Piauí e como estes se ligam ou geram tensões em torno das categorias regional (em suas variações, como nordestina e piauiense) e popular na música local.
Blacking (2007) ressalta a importância de interpretar como as pessoas “situam” a música “dentro de outros modos de atividade social”. Nesse sentido, esta pesquisa procura desvendar como diversos atores sociais que viveram a experiência musical dos anos 1970 classificam e categorizam culturalmente os produtos musicais realizados e interpretados por eles. É importante ressaltar que este trabalho não busca privilegiar ou excluir determinados atores que participaram da construção da MPP. Busco discutir as relações entre identidade-ideologia e seus reflexos nas concepções de autenticidade da MPP. Problematizar essa questão leva a discutir essas categorias e seus reflexos na produção musical que percorre os anos de 1970 a 1985, pois, como fenômeno social, neste enredo, a música resultava principalmente de uma experiência social dita autêntica e símbolo de pertencimento local.
[1]As práticas e redes de relações em torno da música caracterizada como “popular” em Teresina aparece intitulada em alguns discursos dos sujeitos, livros e revistas com a sigla “MPP”. Em alguns momentos do texto para me referir à “Música Popular Piauiense” utilizarei a sigla “MPP”. Encontrei um registro da sigla grafada de outro modo: “MPp”. Acredito que essa variação consonantal empregada reforça a vontade de distinção da música local das outras estéticas de música popular.
[2] 1) Xote: ritmo ou dança muito executado no forró, na música piauiense era interpretado com os seguintes instrumentos: sanfona, zabumba, tambores, triângulo, violões, violas, flauta, piano, dentre outros instrumentos. 2) Frevo: ritmo que mistura marcha, maxixe, é de origem pernambucana. 3) Baião: ritmo nordestino, uma reinterpretação de um tipo de lundu chamado “baiano”, na música piauiense é interpretado com instrumentos similares aos do xote.
3 É importante observar que em um nível geral certas características musicais são amplamente compartilhadas. Nesse sentido, esses estilos podem ser estudados levando em conta a tradição musical ao qual pertence, bem como são avaliados levando em consideração o panorama social da qual essa tradição faz parte.
[4] BARNES, 1968.
[5]Em Teresina esses ritmos eram interpretados com guitarra, baixo, piano, seguindo tendências como o blues,folk e marchas.
[6] O conceito de cultura utilizado aqui se refere a aspectos ou padrões da vida social (Blacking, 2007).
[7]O DAC (Departamento de Assuntos Culturais) na época tinha como tarefa “elaborar os planos culturais da Fundação Cultural do Piauí (órgão do governo, dirigido pela secretária de cultura do Piauí), bem como cumpria a programação artística e cultural, promovendo os meios de popularização da cultura e o intercâmbio entre o Piauí e outros estados”.