O falecimento da arqueóloga Niède Guidon constitui uma perda profunda para a ciência brasileira, especialmente para as Ciências Sociais, que encontram em sua trajetória uma referência de compromisso intelectual. Sua trajetória foi marcada por um compromisso profundo com a valorização da memória humana, a defesa do patrimônio cultural e a articulação entre conhecimento científico e transformação social. Mais do que uma arqueóloga de projeção internacional, Niède Guidon foi uma intelectual pública, cuja obra ressoou amplamente nos campos da Antropologia, da Sociologia e das Políticas Públicas.
O trabalho de Niède Guidon no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, ultrapassou os limites da arqueologia tradicional. Ao revelar vestígios milenares da presença humana nas Américas, ela desafiou paradigmas científicos e reposicionou o Brasil, especialmente o Nordeste, no centro dos debates sobre a pré-história mundial. Mas, Guidon não se limitou a investigar o passado: sua atuação foi também voltada para a transformação do futuro das populações do semiárido.
Com a criação da Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), ela integrou pesquisa científica, preservação ambiental, educação patrimonial e desenvolvimento local, promovendo uma articulação concreta entre ciência e inclusão social. Foi ainda a idealizadora do Museu da Natureza, inaugurado em 2018, no município de Coronel José Dias (PI), próximo ao parque. O espaço apresenta, de forma didática e interativa, a história da vida na Terra, do surgimento do planeta aos impactos da ação humana nos ecossistemas. O museu expressa o compromisso de Guidon com a educação ambiental, a valorização do conhecimento científico e o estímulo ao turismo sustentável. Seu legado é, portanto, múltiplo: científico, cultural, ambiental e profundamente transformador para o sertão brasileiro.
Essas iniciativas revelam uma visão ampla e integradora da ciência, que não se restringe à produção de conhecimento técnico, mas que se volta para a transformação concreta da realidade local. Niède Guidon enxergava o sertão não como uma periferia esquecida, mas como centro de valor civilizacional, onde era possível aliar passado, presente e futuro em um projeto de desenvolvimento baseado na cultura, na ciência e na dignidade.
Para o Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Piauí (PPGCP/UFPI), o legado de Niède Guidon é uma referência central. Sua atuação militante em defesa do patrimônio e da inclusão social está diretamente alinhada com os eixos estratégicos do Programa, que tem buscado articular teoria política, políticas públicas, sustentabilidade e justiça territorial. O reconhecimento de seu trabalho é parte fundamental da identidade intelectual do PPGCP/UFPI, que compreende a ciência como prática transformadora, engajada com os dilemas do presente.
A contribuição de Niède Guidon reforça, para o campo da Ciência Política, a importância de se pensar a política além das instituições formais, valorizando os sujeitos, os territórios e os conflitos simbólicos que atravessam as disputas por memória, cultura e direitos. Sua trajetória nos inspira a compreender o patrimônio como arena política, onde se negociam pertencimentos, identidades e projetos de futuro. Em tempos de negacionismo e desvalorização da ciência, sua vida foi um chamado à resistência, ao rigor e à ética do compromisso com o bem comum.
O PPGCP/UFPI, situado no mesmo estado onde Niède Guidon desenvolveu sua obra e ergueu um dos maiores patrimônios arqueológicos do mundo, presta homenagem à sua memória e reafirma seu compromisso com os princípios que ela defendeu: ciência com responsabilidade social, defesa do patrimônio como direito coletivo e valorização das populações historicamente marginalizadas. Niède Guidon permanece como símbolo de que é possível fazer ciência com paixão, coragem e impacto — e de que o Piauí, pela força de seus saberes e de seus territórios, é lugar de produção de conhecimento de relevância internacional.